O Brasil forma médicos, mas não consegue mantê-los na residência.

O Brasil vive um paradoxo preocupante: forma cada vez mais médicos, mas não consegue mantê-los na residência médica, etapa fundamental de especialização e amadurecimento profissional.
Segundo dados recentes do Ministério da Educação (MEC), quase 30% das vagas de residência médica estão ociosas. Esse número, que poderia parecer apenas estatístico, na verdade escancara uma crise estrutural que atinge a base da formação médica e compromete o futuro da saúde pública no país.

Um retrato da evasão

Durante décadas, a residência médica foi considerada o caminho natural de quem desejava seguir a medicina de forma plena e qualificada. Hoje, o cenário é outro.
Os motivos para o desinteresse são múltiplos, mas se concentram em três eixos principais:

  1. Falta de estrutura nos programas públicos
    Muitos hospitais credenciados para oferecer residência não possuem infraestrutura adequada, faltam equipamentos, insumos, preceptores e até pacientes em número suficiente para garantir o aprendizado prático.
    Jovens médicos relatam, com frequência, carga horária excessiva e aprendizado insuficiente, o que transforma a residência em um período de desgaste, e não de crescimento.
  2. Bolsas defasadas e condições precárias
    A bolsa de residência médica, que atualmente gira em torno de R$ 4.100, permanece praticamente estagnada há mais de uma década, sem reajuste compatível com o custo de vida ou com o nível de exigência da formação.
    A comparação com outras carreiras públicas revela o contraste: enquanto servidores federais e estaduais têm planos de carreira, estabilidade e benefícios, o residente enfrenta jornadas de 60 a 80 horas semanais sem direitos trabalhistas básicos, como férias remuneradas, 13º salário ou adicional noturno.
  3. Sobrecarga e ausência de reconhecimento
    O residente é, ao mesmo tempo, estudante e força de trabalho essencial no funcionamento dos hospitais públicos. No entanto, a falta de reconhecimento e a sobrecarga física e mental geram exaustão, adoecimento e desistência precoce.
    Em um levantamento informal entre residentes de grandes centros, mais de 40% afirmaram considerar abandonar o programa antes da conclusão, seja por burnout, seja por inviabilidade financeira.

Especialidades em colapso

O esvaziamento das residências atinge de maneira especialmente grave as áreas menos atraentes ao mercado privado, mas essenciais ao SUS, como:

  • Medicina de Família e Comunidade, base da atenção primária, com impacto direto na prevenção e no acompanhamento de doenças crônicas.
  • Radioterapia, indispensável no tratamento oncológico.
  • Patologia Clínica e Medicina Laboratorial, responsáveis por diagnósticos fundamentais à conduta médica.

Essas áreas acumulam vagas ociosas, serviços descontinuados e carência de profissionais. O resultado é um efeito cascata: o SUS perde força, a população fica desassistida e o ciclo de desigualdade no acesso à saúde se perpetua.

Faltam médicos ou faltam condições para ser médico?

A pergunta que emerge desse cenário é inevitável: o Brasil realmente sofre com falta de médicos, ou com falta de condições dignas para que eles se formem e permaneçam no sistema?
A expansão desordenada das escolas médicas nas últimas décadas fez crescer o número de graduados, mas não o de programas de residência de qualidade.

Além disso, muitos recém-formados optam por ingressar diretamente no mercado privado, em clínicas populares, telemedicina ou serviços de urgência, onde encontram melhor remuneração e mais autonomia do que enfrentariam na residência.

O resultado é um sistema que forma em quantidade, mas não em profundidade, uma medicina que corre o risco de perder o senso de vocação, excelência e compromisso com o aprendizado contínuo.

Consequências para o sistema de saúde

O impacto da evasão na residência médica é profundo e duradouro.
Sem formação especializada, o país enfrenta:

  • Escassez de especialistas em regiões críticas, sobretudo no interior.
  • Baixa resolutividade da atenção primária e sobrecarga dos grandes centros urbanos.
  • Desigualdade regional cada vez mais acentuada no acesso à saúde especializada.
  • Comprometimento da qualidade assistencial, já que a residência é o principal processo de aprimoramento técnico e ético do médico.

Em última instância, a evasão dos programas de residência fragiliza o próprio SUS, que depende de médicos especializados e comprometidos com a rede pública.

Caminhos para reconstruir o prestígio da residência médica

Reverter esse quadro exige reformas estruturais e valorização real da formação médica.
Algumas medidas fundamentais incluem:

  • Reajuste das bolsas e garantia de direitos trabalhistas básicos, como férias, licenças e proteção previdenciária.
  • Investimento em infraestrutura dos programas públicos, com hospitais-escola equipados e bem supervisionados.
  • Melhoria na preceptoria, com remuneração adequada e reconhecimento do papel do preceptor como educador.
  • Distribuição equilibrada das vagas, priorizando especialidades e regiões com maior déficit.
  • Apoio psicossocial e promoção da saúde mental dos residentes, com políticas de prevenção ao burnout.

Conclusão: entre o ideal e a realidade

O Brasil não enfrenta apenas uma crise de vagas ociosas, mas uma crise de propósito na formação médica.
A residência, que deveria representar o ápice da formação técnica e ética, tornou-se, para muitos, um caminho de exaustão e descrença.

A pergunta que precisa ser feita não é se faltam médicos, mas se existem condições que tornem a residência possível, justa e inspiradora.
Sem essa transformação, o país continuará formando médicos que não encontram na própria estrutura de ensino e trabalho o espaço para se desenvolver plenamente, e quem paga o preço é o paciente, é o SUS, é a sociedade.

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